Para olhar o demônio nos olhos


Nesta semana houve uma sensação compartilhada de que Bolsonaro atravessou mais uma vez o ponto da saturação. Muita coisa que tem dito e feito nos últimos 7 meses é insuportável, é inaceitável, é inacreditável. Mas ele segue impávido, colosso na sua estupidez e na sua determinação de mostrar sem pudor sua face ignóbil: o monte Everest da sua monstruosidade repetida a cada dia, camada após camada, seu esforço de nos levar a todos para sua latrina mental e moral.
Ele aposta no efeito “entorpecimento” coletivo, na normalização do absurdo. Como se, pela repetição, a capacidade de indignação e a força que ela pode carregar se esvaísse em estupefação. Lobotomizadas por doses diárias do hediondo, as pessoas adoecem ou se fecham em suas vidas privadas e preferem não saber, tanto quanto possível.
Eu penso que essas formas de reação podem realizar entre nós um tipo de distopia imaginada apenas no terreno da ficção. Um país gigantesco com uma população enorme de zumbis, incapazes de reagir, entregues à sanha de neocolonizadores. Uma colônia extrativista pós-colonial especializada em exportação de produtos primários, mas principalmente de renda para o capital e ocupada por um exército de trabalhadores precarizados e fanatizados quer por cultos religiosos quer por ódio político.
Podemos estar a um passo disso, mas os que podemos resistir ainda somos poucos e esses poucos precisam se preservar porque a aposta anti-civilizatória de Bolsonaro é uma aposta arriscada. Ele supõe que os donos do poder precisam dele e que vão manter seu apoio até o fim. Ele aposta ainda que os 20 ou 30% da população que julga ter e manter serão capazes de promover um tipo de equilíbrio anti-hegemônico num ambiente dividido em 3 terços de posições políticas em que ninguém consegue construir a maioria. Como está com o cetro na mão, aposta na manutenção do status quo pelo terror mais até que pela institucionalidade, mesmo que esta esteja, em tese, a seu favor. Mas o equilíbrio é instável e exatamente aí que reside nossa chance de mudar o jogo. Mas precisamos estar de fato em campo. Precisamos aprender em primeiro lugar a construir, de fato, a resistência.
Como?
É possível pensar em caminhos políticos coletivos, mas hoje gostaria de falar sobre alternativas no campo pessoal para não adoecer e não se fechar na mesquinhez da vida privada, reações que tenho visto com mais frequência.
Temos de retomar certos princípios individualistas liberais e pensar que nosso destino está em nossas mãos. Ainda que não seja verdade, é uma ideia que tem força. Pensar que é preciso resistir à enxurrada que arrasta não apenas os valores democráticos e os direitos sociais e políticos com serenidade. Eu sei que é difícil manter a serenidade diante de tanto vitupério, mas recorramos aos laços que nos unem à civilização. Recorramos aos nossos amigos e amores, à literatura, ao cinema, à arte, ao trabalho, aos movimentos sociais, à cultura popular, à música. Dizer isso já se tornou um lugar comum, mas é preciso dar um passo a mais e tornar essas coisas alimentos para nossa capacidade de compreender e agir sobre o presente. Não basta saber o que Bolsonaro e sua corte dizem e fazem; é preciso absorver, digerir, transformar, tornar antídoto. É preciso inocular o veneno para haver anticorpos adequados. Lembremos que em tempos sombrios e autoritários, a reflexão e a ação política fundam o território da liberdade.
É preciso portanto encontrar meios de transformar essa reflexão em combustível para a mudança que gostaríamos de ver. Não se deve fechar os jornais, fugir das notícias. A realidade não deixará de nos afetar se a gente fechar os olhos para ela. Pelo contrário, é preciso estar com os olhos e ouvidos bem abertos. É preciso olhar a barbárie e não desviar os olhos. Não se exorciza o demônio fugindo dele.
Construir um outro futuro é tarefa árdua e depende de sermos capazes de viver cada dia presente sendo capazes de projetá-lo. Então momento autoajuda: construa essa fortaleza com os instrumentos que tiver a mãos, com os que fizer mais sentido pra você.
Por fim, pratique um exercício físico. Ajuda muito.

Comentários

  1. Vilma, tenho pensado nisso há tempos. Bolsonaro tornou-se um tema onipresente. Invadiu a vida privada. Fala-se sobre ele no café da manhã, almoço e jantar. Quando saímos, a mesma coisa. É uma intoxicação espiritual. Além disso, não deixa de ser um ponto para ele. Já que é tema permanente.
    Foi então que me lembrei de que na ditadura militar a vida cultural fervia. Da musica ao cinema, passando pela literatura, criava-se muito. Claro que isso não se deve à ditadura, mas aos impulsos vindos da urbanização, consolidação e expansão (ainda que tímida) das escolas e universidades, etc. De qualquer forma, lutava-se contra a ditadura, mas os afetos, a inteligência moviam-se. Os tempos são outros hoje, mas concordo com você, as ações civilizatórias como vc diz são tão importantes quanto a resistência política. Não dá pra se deixar engolir pela pauta inominável da extrema direita. Belo artigo, parabéns!

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